HISTÓRIAS DE ESPIRITUALIDADE

HISTÓRIAS DE ESPIRITUALIDADE
A SABEDORIA DOS MESTRES

domingo, 18 de outubro de 2015

FÁBULAS DE ESOPO - VERTIDAS DO GREGO POR MANUEL MENDES DA VIDIGUEIRA (1643)



AS FÁBULAS DE ESOPO

As fábulas são lições de prudência e sensatez, que emigram como os povos. Nesse movimento incessante, adquirem, modificam-se e perdem caracteres e variadíssimas qualidades, sofrendo consequentemente múltiplas variações nas épocas.
Há quem refira Esopo como o “pai” das fábulas, mas antes dele, na Grécia clássica e noutras culturas mundiais a sua existência é evidente.
O Livro de Esopo é um manuscrito do século XV, que foi encontrado numa biblioteca de Viena de Áustria, pelo etnógrafo Leite de Vasconcelos.
Posteriormente, um outro fabulário surgiu em Portugal, no ano de 1643, dado à estampa na cidade de Évora: o de Manuel Mendes da Vidigueira, “Vida e fábulas do insigne fabulador Esopo, de novo juntas e traduzidas com breves aplicações morais a cada fábula”.
A fábula erudita tem o seu início no século XVI, e são muitos os poetas portugueses e brasileiros, que se dedicaram à sua tradução e adaptação.
Um nome para além fronteiras logo se nos depara, quer pela sua eloquência quer pela escolha realizada no material existente: La Fontaine. Deste e da sua influência, avultam em território nacional dois nomes: Filinto Elísio e Bocage, que traduziram e imitaram as suas fábulas. No entanto, muitos outros o fizeram.
As fábulas de La Fontaine não conhecem fronteiras na sua divulgação, como as não conhecem no que às origens respeitam. Umas são oriundas de compilações orientais, outras gregas – v.g. de Esopo, Fedro – e outras árabes.
São antes de mais anónimas e num sentido ainda que restrito, património da humanidade.
La Fontaine, tal como Esopo, ao descrever o “carácter” dos animais, retratou indivíduos e a sociedade da sua época com as suas especificidades próprias, sem olvidar a prossecução dos interesses morais subjacentes às narrativas.
Julgamos que a estrutura ou essência da fábula deverá ser a brevidade e a inteligibilidade imediata.


FÁBULAS DE ESOPO (texto original de Manuel Mendes da Vidigueira – ano de 1643 – tenha-se em consideração a ortografia antiga)


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O GALO E A PÉROLA

Andava o galo esgravatando no monturo, para achar migalhas, ou bichos, que comer, e acertou de descobrir uma pedra: disse então: - Ó Pedra preciosa, ainda que lugar sujo, se agora te achara um discreto Lapidário, te recolhera; mas a mim não me prestas; mais caso faço de uma migalha, que busco para o meu sustento, ou dous grãos de cevada. Dito isto, a deixou, e foi por diante esgravatando para buscar conveniente mantimento.


O LOBO E O CORDEIRO

Estava bebendo um Lobo encarniçado em um ribeiro de água, e pela parte de baixo chegou um Cordeiro também a beber. Olhou o Lobo de mau rosto, e disse, reganhando os dentes: - Porque tiveste tanta ousadia de me turvar a água onde estou bebendo? Respondeu o Cordeiro com humildade: - A água corre para mim, portanto não posso eu torvá-la. Torna o Lobo mais colérico a dizer: - Por isso me hás-de praguejar? Seis meses haverá que me fez outro tanto teu pai. Respondeu o Cordeiro: - Nesse tempo, senhor, ainda eu não era nascido, nem tenho culpa. – Sim tens (replicou o Lobo) que todo o pasto do meu campo estragaste. – Mal pode ser isso, disse o Cordeiro, porque ainda não tenho dentes. O Lobo, sem mais razões, saltou sobre ele e logo o degolou, e o comeu.


O LOBO E AS OVELHAS

Havia guerra travada entre Lobos e Ovelhas; e elas, ainda que fracas, ajudadas dos rafeiros, sempre levavam o melhor. Pediram os Lobos paz, com condição que dariam de penhor seus filhos, e as Ovelhas que também lhe entregassem os rafeiros. Assentadas as pazes com estas condições, os filhos dos Lobos uivavam rijamente. Acodem os pais, e tomam isto por achaque de ser a paz quebrada; e tornam a renovar a guerra. Bem quiseram defender-se as Ovelhas, mas como sua principal força residia nos rafeiros, que entregaram aos Lobos, facilmente foram deles vencidas, e todas degoladas.


O REI DOS BUGIOS E DOIS HOMENS

Caminhavam dois companheiros tendo perdido o caminho, depois de terem andado muito, chegaram à terra dos Bugios. Foram logo levados ante o rei, que vendo-os lhes disse: - Na vossa terra, e nessa por onde vindes, que se disse de mim e do meu reino? Respondeu um dos companheiros: - Dizem que sois rei grande, de gente sábia, e lustrosa. O outro, que era amigo de falar verdade, respondeu: - Toda vossa gente são bugios irracionais, forçado é que o rei também seja bugio. Como isto ouviu o rei, mandou que matassem a este, e ao primeiro fizessem mimos, e o tratassem muito bem.


A ANDORINHA E OUTRAS AVES

Semeavam os homens linho, e vendo-os a Andorinha disse aos outros pássaros: - Por nosso mal fazem os homens esta seara, que desta semente nascerá linho, e farão dele redes e laços para nos prenderem. Melhor será destruirmos a linhaça, e a erva, que dela nascer, para que estejamos seguras. Riram as Aves deste conselho e não quiseram tomá-lo. O que vendo a Andorinha, fez pazes com os homens e se foi viver em suas casas. Eles fizeram redes, e instrumentos de caça, com que tomaram e prenderam todos os pássaros, tirando só a Andorinha, que ficou privilegiada.


O RATO E A RÃ

Desejava um Rato passar um rio, e temia, por não saber nadar. Pediu ajuda a uma Rã, a qual se ofereceu de o passar, se se atasse ao seu pé. Consentiu o Rato, e tomando um fio, se atou pelo pé e na outra ponta atou o pé da Rã. Saltaram ambos na água, mas a Rã com malícia trabalhava por se mergulhar, por que o Rato se afogasse. O Rato fazia por sair para fora, e ambos andavam neste trabalho e fadiga. Passava um milhano por cima e vendo o rato sobre a água, se abateu per o levar, e levou juntamente a Rã, que estava atada com ele, no ar os comeu ambos.


O LADRÃO E O CÃO DE CASA

Querendo um Ladrão entrar em uma casa de noite para roubar, achou à porta um Cão, que com ladridos o impedia. O cauteloso Ladrão, para o apaziguar, lhe lançou um pedaço de pão. Mas o Cão disse: - Bem entendo que me dás este pão por que me cale, e te deixe roubar a casa, não por amor que me tenhas; porém já que o dono da casa me sustenta toda a vida, não deixarei de ladrar, se não te fores, até que ele acorde e te venha estorvar. Não quero que este bocado me custe morrer de fome toda a minha vida.


O CÃO E A OVELHA

Demandou o Cão à Ovelha certa quantidade de pão, que dizia haver-lhe emprestado, ou dado na sua mão em depósito. Ela negou havê-lo recebido. Dá o Cão três testemunhas, convém a saber: um Lobo, um Buitre e um Milhano, os quais todos já vinham com o Cão subornados, e apostados a jurar em seu favor, como com efeito juraram, dizendo que eles viram receber à Ovelha o pão, que se lhe pedia. Vendo a prova, a condenou o Juiz a que pagasse; e como ela não tivesse por onde, lhe foi forçado tosquiar o pêlo, e vendê-lo ante tempo, do que pagou o que não comera, e ficou nua padecendo as neves e frios do Inverno.


O CÃO E A CARNE

Levava um Cão na boca um pedaço de carne, passava com ela um rio, e vendo no fundo da água a sombra da carne maior, soltou a que levava nos dentes, por tomar a que via dentro na água. Porém como o rio levou para baixo com sua corrente a verdadeira, levou também a sombra e ficou o Cão sem uma e sem outra.


A MOSCA SOBRE A CARRETA

Sobre um carro de mulas, carregado, pousou uma Mosca, e achou-se tão altiva de ir a seu gosto, alta, que começou a falar soberba contra a Mula dizendo que andasse depressa, senão que a castigaria, picando-a onde lhe doesse. Virou a Mula o rosto dizendo: - Cala-te, parva sem vergonha, que não temo nem me podes fazer nada; o medo que me causa é do carreteiro, que leva na mão o açoite, que tu só com importunações cansas-me, sem me fazer outro mal.


O CÃO E A IMAGEM
Buscando de comer, o Cão acertou de achar uma Imagem do homem, muito primorosa e bem feita de papelão com cores vivas. Chegou o Cão a cheirar por ver se era homem que dormia. Depois deu-lhe com o focinho e viu que se rebolava, e como não quisesse estar queda, nem tomar assento, disse o Cão: - Por certo que a cabeça é linda, senão que não tem miolo.


O LEÃO, A VACA, A CABRA E A OVELHA

Fizeram parceria um Leão, uma Vaca, uma Cabra e uma Ovelha, para que caçassem de mão comum e partissem o ganho. Correndo sobre este concerto, acharam um Veado, depois de terem andado e trabalhado muito, o mataram. Chegaram todos cansados e cobiçosos da presa, e fizeram-no em quatro partes iguais. O Leão tomou uma, e disse: - Esta é minha conforme ao concerto; estoutra me pertence por ser mais valente de todos; também tomarei a terceira, porque sou rei de todos os animais, e quem na quarta bulir, tenha-se por meu desafiado. Assim as levou todas, e os parceiros se acharam enganados, e com agravo, mas sofreram por serem desiguais na força ao Leão.


O CASAMENTO DO SOL

Dizem que em certo tempo desejou o Sol se casar, e todas as gentes, agravadas disso, se foram queixar a Júpiter, dizendo: - Que no Estio trabalhosamente sofriam um Sol, que com seus raios as abrasava, donde inferiam e provavam, que se o Sol se casasse e viesse a ter filhos, queimaria o mundo todo; porque um Sol faria Verão calmoso na Índia, outro em Grécia, outro na Noruega e terras setentrionais; pelo que sendo todas as três zonas tórridas, não teriam as gentes onde viver. Visto isto por Júpiter, mandou que não casasse.


O HOMEM E A DONINHA

Um homem que caçava ratos, prendeu na armadilha uma Doninha. Ela vendo-se em seu poder, lhe disse que a soltasse, e alegou razões, dizendo: que ela nenhum mal fazia, antes lhe alimpava a casa de ratos e bichos, e sempre, por lhe fazer bem, os andava matando. Respondeu o homem: - Se tu por fazer bem o fizeras, devia-te eu agradecimento, mas como o fazes pelo comer, não te devo nada, antes te quero matar, que se eles te faltarem, comer-me-ás o meu, pior do que o fazem os mesmos ratos.


A BUGIA E A RAPOSA

Rogava a Bugia à Raposa que cortasse a metade do seu rabo e lho desse, dizendo: - Bem vês que o teu rabo arroja, e varre a terra, e é defeito por demasiado; o que dele sobeja me podes prestar a mim, e cobrir-me estas partes, que vergonhosamente trago descobertas. Antes quero que arroje, (disse a Raposa) e varra o chão, e me seja pesado, que aproveitares-te tu dele. Por isso não to darei nem quero que coisa minha te preste. E assim ficou sem ele a Bugia.


JUNO E O PAVÃO

Veio o Pavão a Juno muito queixoso, dizendo, por que razão o Rouxinol havia de cantar melhor que ele, e ter-lhe outras muitas vantagens? Disse Juno, que não se agastasse; que por isso tinha ele as penas formosas cheias de olhos, que parecem estrelas. – Isso é vento (replicou o Pavão) mais tomara saber cantar. Juno respondeu. Não podes ter tudo. O Rouxinol tem voz, a Águia força, o Gavião ligeireza, tu contenta-te com tua formosura.


O LOBO E O GROU

Comendo o Lobo carne, atravessou-se-lhe um osso na garganta, que o afogava. Estando nesta afronta, pediu ao Grou que lhe valesse nela, e com seu pescoço comprido lhe tirasse do papo o osso. Fê-lo o Grou, tirou-lhe o osso, e estando livre o Lobo, pediu-lhe alguma parte do muito que antes se oferecia a dar-lhe. Porém o Lobo lhe respondeu: - Ó ingrato! Não me agradeces que te tivesse metido a cabeça dentro na minha boca, e que pudera apertar os dentes e matar-te. Não me peças paga, que obrigado me ficas, e assaz és de ingrato em não reconheceres tão grande benefício. Calou-se o Grou, e foi muito arrependido do que fizera, dizendo: - Nunca mais por gente ruim meterei a cabeça, e vida em semelhante perigo.


AS DUAS CADELAS

Tomando a uma Cadela as dores de parir, e não tendo lugar donde parisse, rogou a outra que lhe desse a sua cama e pousada, que era em um palheiro, e tanto que parisse se iria com seus filhos. Fê-lo a outra com dó dela, e depois de haver parido, lhe disse que se fosse embora; porém a boa hóspeda mostrou-lhe os dentes, e não a quis deixar entrar, dizendo que estava de posse, e que não a lançariam dali, senão fosse por guerra e às dentadas. 


O HOMEM E A COBRA

Na força do chuvoso, e frio Inverno andava uma Cobra fraca, e encolhida, e um homem de piedade a recolheu, agasalhou e alimentou enquanto houve frio. Chegado o Verão, começou a cobra a estender-se, e desenroscar-se, pelo que ele a quis lançar fora; mas ela levantou o pescoço para o morder. O que vendo o homem, tomou um pau, assanhou-se a Cobra, e começaram ambos a pelejar. De que resultou ficar ela morta, e ele bem mordido.


O ASNO E O LEÃO

O Asno simples e torpe encontrou-se com o Leão em um caminho; e de altivo, e presunçoso, se atreveu a lhe falar, dizendo: - Vades embora companheiro. Parou-se o Leão vendo este desatino e ousadia; mas tornou logo a prosseguir seu caminho, dizendo: - Leve cousa me fora matar e desfazer agora este; porém não quero sujar meus dentes, nem as fortes unhas em carne tão bestial e fraca. Assim passou, sem fazer caso dele.


O RATO CIDADÃO E MONTESINHO

Um rato que morava na Cidade, acertando de ir ao campo, foi convidado por outro, que lá morava, e levando-o à sua cova, comeram ambos cousas do campo, ervas e raízes. Disse o Cidadão ao outro: - Por certo, compadre, tenho dó de ti, e da pobreza em que vives. Vem comigo morar na Cidade, verás a riqueza, e a fartura que gozas. Aceitou o rústico e vieram ambos a uma casa grande e rica, e entrados na despensa, estavam comendo boas comidas e muitas, quando de súbito entra o despenseiro, e dois gatos após ele. Saem os Ratos fugindo. O de casa achou logo seu buraco, o de fora trepou pela parede dizendo: - Ficai vós embora com a vossa fartura; que eu mais quero comer raízes no campo sem sobressalto, onde não há gato nem ratoeira. E assim diz o adágio: Mais vale magro no mato, que gordo na boca do gato.


A ÁGUIA E A RAPOSA

Tinha a Águia filhos e para os cevar levou nas unhas dois raposinhos tomados de uma lousa. A mãe, que o soube, lhe foi rogar que desse os seus filhos. Mas a Águia lá do alto zombou dos rogos e disse que não deixaria de lhos comer. A Raposa magoada começou logo a cercar a árvore, onde a Águia tinha seu ninho de muitas palhas, tojos, paus secos e acendalhas de tal maneira, que pondo-lhe o fogo, fez uma fogueira muito grande. Viu-se a Águia atribulada do fumo, e labareda, e do receio que ardesse a árvore toda, lançou-lhe os filhos sem lhe tocar, e quase ficou chamuscada pela indústria da Raposa.


O GALO E A RAPOSA

Fugindo as Galinhas com seu Galo de uma Raposa, subiram-se em um pinheiro, e como a Raposa ali não pudesse fazer-lhes mal, quis usar de cautela, e disse ao Galo: - Bem podeis descer-vos seguramente, que agora acabou-se de assentar paz universal entre todas as aves e animais; portanto, vinde, festejaremos este dia. Entendeu o Galo a mentira; mas com dissimulação respondeu: - Estas novas por certo são boas e alegres, mas vejo acolá assomar três cães; deixemo-los chegar, todos juntos festejaremos. Porém, a Raposa, sem mais esperar, acolheu-se dizendo: Temo que o não saibam ainda, e me matem. Assim se foi e ficaram as galinhas seguras.


O BEZERRO E O LAVRADOR

Tinha um Lavrador um Bezerro, forte e mimoso e pô-lo no jugo, com outro boi manso; mas como o Bezerro o não quisesse tomar nem sofrer, com pancadas e pedradas, trabalhava o Lavrador para o amansar. E disse ao Boi manso: - Não te tomo com este para que lavres, que ainda não é para isso, senão para o amansar de pequeno, porque depois que for touro madrigado não haverá quem o amanse.


O LOBO E O CÃO

Encontrando-se um Lobo e um Cão em um caminho, disse o Lobo: - Inveja tenho companheiro, de te ver tão gordo, pescoço grosso e cabelo luzidio; eu sempre ando magro e arrepiado. Respondeu o Cão: - Se tu fizeres o que eu faço, também engordarás. Estou em uma casa, onde me querem muito, dão-me de comer, tratam-me bem; e eu tenho cuidado só de ladrar quando sinto ladrões de noite. Por isso, se queres, vem comigo, terás outro tanto. Aceitou o Lobo, e começaram a ir. Mas no caminho disse o Lobo: - De que é isso companheiro, que te vejo o pescoço esfolado? Respondeu o Cão: - Porque não morda de dia aos que entram em casa, estou preso com uma corda, de noite me soltam até pela manhã, que tornam a prender-me. – Não quero tua fartura; respondeu o Lobo: A troco de não ser cativo, antes quero trabalhar, e jejuar livre. E dizendo isto se foi.


OS MEMBROS E O CORPO

As mãos e os pés se queixavam dos outros membros, dizendo – que eles toda a vida trabalhavam e traziam o corpo às costas, e tudo redundava em proveito do estômago que comia sem trabalho; portanto que se determinasse a buscar sua vida, que eles não haviam de dar-lhe de comer. Por muito que o estômago lhes rogou, não quiseram tomar outra determinação, e assim começaram a negar-lhe a comida: e ele enfraqueceu. Mas como juntamente enfraquecessem os pés e mãos, tornaram depressa a querer alimentá-lo; mas como já a fraqueza fosse muita, nada lhes valeu, e morreram todos juntamente.


A ÁGUIA E A COREIXA

A Águia tomou nas unhas um Cágado para cevar-se, e trazendo-o pelo ar, e dando-lhe picadas, não podia matá-lo, porque estava muito recolhido em sua concha. Embravecia-se muito com isso a Águia, sem lhe prestar, quando chega a Coreixa, e diz: - A caça que tomastes é em extremo boa, mas não podeis gozar dela senão por manha. Disse a Águia que lhe ensinasse a manha e partiria com ela da caça. A Coreixa o fez dizendo: - Subi-vos sobre as nuvens, e de lá deixai cair o Cágado sobre alguma laje, quebrará a concha e ficar-nos-á a carne descoberta. A Águia assim o fez; sucedendo como queriam, comeram ambas da caça.


A RAPOSA E O CORVO

O Corvo apanhou um queijo, e com ele fugindo, se poisou sobre uma árvore. Viu-o a Raposa, e desejou de lhe comer o seu queijo: e pondo-se ao pé da árvore, começou a dizer ao Corvo: - Por certo que és formoso, e gentil-homem, e poucos pássaros há que te ganhem. Tu és bem disposto e mui galante; se acertaras de saber cantar, nenhuma ave se comparará contigo. Soberbo o Corvo destes gabos e desejando de lhe parecer bem, levanta o pescoço para cantar; porém abrindo a boca, caiu-lhe o queijo. A Raposa o tomou e foi-se, ficando o Corvo faminto e corrido de sua própria ignorância.


O LEÃO E OS OUTROS ANIMAIS

Estava um Leão doente e fraco de velho, e vindo um Porco-Montês, que lhe lembrou ser maltratado dele noutro tempo, deu-lhe uma forte trombada, e passou. Veio um Touro e escomou-o, e outros muitos animais por se vingarem o maltrataram. Por derradeira veio um asno e deu-lhe dous couces, com que lhe derrubou as queixadas. Chorava o Leão, dizendo: - Tempo sei eu que todos estes só de meu bramido tremiam e nenhum havia tão forte, que não fugisse de se encontrar comigo, agora que me vêem fraco, todos querem vingar-se, e não há quem não se me atreva.


AS RÃS E JÚPITER

As Rãs, no outro tempo, pediram a Júpiter que lhes desse rei, como tinham outros muitos animais. Riu-se Júpiter da ignorante petição, e deferindo a ela, lançou um madeiro no meio da lagoa. Começaram as Rãs a ter-lhe respeito, porém desde que entenderam que não era cousa viva, de novo tornaram a Júpiter pedindo rei. Agastado Júpiter da importunação, deu-lhes a Cegonha, que começou a comê-las uma a uma. Vendo elas esta crueldade, foram-se com queixas, e por remédio a Júpiter, mas ele as lançou de si, dizendo: - Andai para loucas: já que vos não contentastes do primeiro rei, sofrei este, que tanto me pedistes.


AS POMBAS E FALCÃO

Vendo-se as Pombas perseguidas do Milhano, que as maltratava de quando em quando, e buscando como poderiam livrar-se, quiseram valer-se do Falcão. Tomou este o cargo de as defender; mas começou a tratá-las muito pior, matando-as e comendo-as sem piedade. Vendo-se sem remédio, diziam: Com razão padecemos, pois não nos contentando do que tínhamos, soubemos tão mal escolher cousa que tanto nos importava.


O PARTO DA TERRA

Em certo tempo, começou a Terra a dar urros, e inchar, dizendo que queria parir. Andava a gente mui pasmada, e cheia de temor, e receosa que nascesse algum monstro proporcionado com a mãe, que pudesse destruir o mundo todo. Chegado o tempo do parto, estando todos juntos suspensos, pariu a Terra um Murganho, e ficou sendo riso o que antes era medo.


O GALGO VELHO E SEU AMO

A um Galgo velho, que havia sido muito bom, se lhe foi uma lebre dentre os dentes, porque quase já os não tinha. O amo por isso o açoitou cruelmente, e lançou de si, como cousa que nada valia. Disse o Galgo: - Deves, senhor, lembrar-te como te servi bem enquanto era moço, quantas lebres tomei, e quanto me estimavas: agora que sou velho, e estou posto no osso, por uma que me fugiu, me açoutas, e lanças fora, devendo perdoar-me e pagar-me bem o muito que te tenho servido.


AS LEBRES E AS RÃS

Vendo-se as Lebres corridas dos Galgos e espantadas de todos os animais, assentaram por não passar tanto sobressalto, de se matarem afogadas em um rio; e querendo dá-lo à execução, como corressem com ímpeto para se arremessarem na água, chegando à borda dela viram grande número de Rãs saltarem com medo na ribeira. Reportaram-se as Lebres um pouco, e mudando o conselho, disseram: - Pois que vivem estas Rãs, havendo medo de nós e de todos os que no-lo causam, soframos nós a vida, que já há outros mais acossados e medrosos.


O LOBO E O CABRITO

Uma Cabra, indo pastar ao campo, deixou o filho em casa e mandou-lhe que não abrisse ao Urso, nem Lobo, que ali viesse, porque morreria. Ida ela veio um Lobo, e fingindo a voz de Cabra, começou a afagar o Cabrito, dizendo: - Que lhe abrisse, que era sua mãe. Ouvindo isto o Cabrito, chegou à porta e por uma fenda olhou e viu o Lobo, e sem outra resposta virou as costas e recolheu-se em casa. O Lobo foi-se, e ele ficou salvo.


O CERVO, O LOBO E A OVELHA

Demandava o Cervo à Ovelha falsamente certo trigo, que dizia haver-lhe emprestado. A Ovelha pudera negar-lho, mas receou, porque estava um Lobo, de companhia com o Veado, e assim com dissimulação lhe disse: - Rogo-te por tua vida, que esperes alguns dias, e então averiguaremos nossas contas, que eu te pagarei quanto te dever. Foi contente o Cervo. Porém tanto que ambos se encontraram sem o Lobo estar presente, a Ovelha o desenganou, que nem lhe devia trigo, nem lho devia de pagar.


A CEGONHA E A RAPOSA

Sendo amigas a Cegonha com a raposa, a Raposa a convidou um dia a jantar. Chegado o tempo, preparou a Raposa ardilosa uma comida líquida, manjar como papas e a estendeu por uma lousa, e importunava a Cegonha a que comesse. Mas como ela picava na lousa, quebrava o bico, e nada tomava nele, com que se foi faminta para o ninho. Mas por se vingar, convidou a Raposa outra vez e lançou o manjar em uma almotolia, donde comia com o bico, e pescoço comprido. E a Raposa não podendo meter o focinho, se tornou para sua casa, corrida e morta de fome.


A GRALHA E OS PAVÕES

Fez-se a Gralha bizarra e louca vestindo-se de penas de Pavões, que pediu emprestadas e desprezando as outras Gralhas, andava com os Pavões de mistura. Porém eles lhe pediram as suas penas, e começando a depená-la, todos lhe levavam penas e carne no bico. Depois querendo chegar-se às outras, ainda que com temor e vergonha, diziam elas: Quanto te valera mais contentares-te com o que te deu a natureza, que quereres mudar de estado; para vires a este em que estás, pelada, ferida e vergonhosa.


A FORMIGA E A MOSCA

Entre a Mosca e a Formiga, houve grande altercação sobre pontos de honra. Dizia a Mosca: - Eu sou nobre, vivo livre, ando por onde quero, como viandas preciosas, e assento-me à mesa com o rei, e dou beijos nas mais formosas damas. Tu mal-aventurada, sempre andas trabalhando. Respondeu a Formiga: Tu és douda ociosa. Se pousas uma vez em prato de bom manjar, mil vezes comes sujidades e imundícias, aborrecida de todos; se te pões no rosto das damas ou à mesa com o rei, não é por sua vontade, senão porque tu és enfadonha e importuna.


A RÃ E O TOURO

Andava um grande Touro passeando ao longo da água, e vendo-o a Rã tão grande, tocada de inveja, começou de comer, e inchar-se com vento, e perguntava às outras se era já tão grande. Responderam elas que não. Torna a Rã segunda vez, e põe mais força por inchar; e desenganada do muito que lhe faltava para igualar o Touro, terceira vez inchou tão rijamente, que veio a arrebentar com cobiça de ser grande.


O CAVALO E O LEÃO

Viu o Leão andar comendo o Cavalo em um outeiro, e cuidando em que maneira faria que lhe esperasse para o matar, chegou-se com palavras amigas, dizendo que era médico, se queria que o curasse. O Cavalo, que o conheceu e entendeu, disse com dissimulação: - Em verdade, vens, amigo a bom tempo, que tenho neste pé um estrepe de que estou maltratado. Chegou-se o Leão a ver-lhe o pé; e o Cavalo o levantou e lho assentou nas queixadas, em modo que ficou embaraçado; e tornando em si, vendo era ido o Cavalo, disse: - Por certo que fez bem em me ferir e ir-se, pois eu queria comê-lo e não curá-lo.


AS AVES E O MORCEGO

Havia guerra travada entre as Aves e outros animais, que, como eram fortes, andavam as Aves maltratadas e vencidas. Temeroso disto, o Morcego passou-se do bando contrário e voava por cima dos animais de quatro pés, posto já de sua parte. Sobreveio a Águia em favor das Aves, e alcançaram vitória. E tomando o Morcego, em castigo de traição, lhe mandaram que andasse sempre pelado e às escuras.


O CAVALO E O ASNO

Indo o Cavalo com jaezes ricos de seda e ouro de muito preço, encontrou no caminho um Asno carregado, e disse-lhe com muita soberba: - Animal descomedido, porque não me dás lugar, e te desvias para que eu passe? Calou e sofreu o pobre Asno. Mas daí a poucos dias emanqueceu o Cavalo, e puseram-no de albarda para servir. Acertou o Asno de o achar carregado de esterco, e disse-lhe: - Que vai, irmão, onde está vossa soberba, porque não mandais agora que me arrede, como fazias em outro tempo?


O FALCÃO E O ROUXINOL

O Falcão uma manhã se apossou do ninho onde o Rouxinol tinha seus filhos, e quis matá-los. Começou o Rouxinol com muita brandura a rogar-lhe que não os matasse, e que o serviria. Disse o Falcão, que era contente, se cantasse de modo que o satisfizesse. Começou o triste Rouxinol a cantar muito sentido, e suave. Porém o Falcão mostrando-se descontente da música, começou a comê-los. Chega nisto por detrás um caçador e lança ao Falcão um laço em que o prendeu e o levou arrastos, e o Rouxinol ficou livre.


AS ÁRVORES E A MACHADA

Um machado de aço bem forjado, faltando-lhe o cabo, sem ele não podia cortar. Disseram as Árvores ao Zambujeiro, que lhe desse o cabo. E como o machado esteve encavado, um homem com ele começou a fazer madeira, e destruir o arvoredo. Disse então o Sobreiro ao Freixo: - Nós temos a culpa, que demos cabo ao Machado para nosso mal; porque a não lho darmos, seguras pudéramos estar dele.


O ASNO E O MERCADOR

Um tendeiro caminhando para a feira levava um Asno carregado de mercadorias, que de mui fraco, andava devagar. O Mercador cobiçoso com desejo de chegar, dava tanto no Asno, que não podia bulir-se, que caiu no caminho com a carga e morreu. Depois de morto o esfolaram e da pele lhe fizeram um tambor, em que andavam de contínuo rangendo e batucando.


O RATO E A DONINHA

Uma Doninha, como de velha e cansada, não pudesse já caçar, usava esta manha: Enfarinhava-se toda e punha-se mui queda a um canto da casa. Vinham alguns Ratos que cuidando ser outra coisa, chegavam por comer, e ela os comia. Por derradeiro veio um Rato velho, que tinha já escapado de muitos trances, e posto de longe disse: - Por mais artes que uses, não me colherás. Engana tu a esses pequenos; mas eu, conheço-te bem, não hei-de chegar a ti. E dizendo isto, foi-se.


A RAPOSA E AS UVAS

Chegava a Raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas, e cobiçou-as. Começou a fazer suas diligências para subir, porém como estavam altas e íngreme a subida, por muito que fez, não pôde trepar; pelo que disse: - Estão uvas em agraço e botar-me-ão os dentes, não quero colhê-las verdes, que também sou pouco amiga delas. E dito isto se foi.


O PASTOR E O LOBO

Fugiu um Lobo de um caçador que vinha em seu seguimento, e diante de um Pastor se escondeu em umas moutas, rogando-lhe que se o caçador lhe perguntasse, dissesse era ido. Ficou o Pastor de o fazer. E chegado o caçador, perguntando pelo Lobo, o Pastor lhe dizia que era ido, mas com a cabeça lhe acenava para onde estava; não atentou o caçador nos acenos, e foi-se. Saiu o Lobo e disse-lhe o Pastor: - Que vai amigo, muito me deves, bom valedor tiveste em mim. Valeu-me a mim minha ventura, (respondeu o Lobo) e não te entender o caçador; pelo que nada te devo, antes se bendigo a tua língua, amaldiçoo a tua cabeça, que tanto fez por me descobrir.


O ASNO E A CACHORRINHA

Vendo o Asno que seu amo brincava com uma Cachorrinha, e se alegrava com ela, e a tinha à mesa, dando-lhe de comer, porque o afagava vinda de fora e saltava nele, creio que se o outro tanto lhe fizesse, também seria estimado; e com essa inveja se vai ao senhor em entrando de fora e pondo-lhe as mãos sobre os ombros, começou a lamber-lhe o rosto com a língua. Espantado o amo, brada, e acodem os criados e a poder de muitas pancadas tornaram a meter o Asno em sua estrebaria.


O LEÃO E O RATO

Estando o Leão dormindo, andavam uns Ratos brincando ao redor dele, e saltando-lhe por cima, o acordaram. Tomou ele um entre as mãos, e estava para o matar, mas pelo ter em pouco, e pelos muito rogos, com que lhe pedia, o soltou. Sucedeu daí a pouco tempo cair o Leão em uma rede, onde ficou liado, sem poder valer-se de suas forças. E sabendo-o o Rato, tal diligência pôs, que roeu brevemente os laços e cordéis, e soltou o Leão, que se foi livre, em paga da boa obra que lhe fez.


O MILHANO E SUA MÃE

Estando o Milhano enfermo e receando a morte, que via já chegada, rogou de propósito a sua mãe que fizesse, por sua saúde, romarias aos Santos. Respondeu ela: De boa vontade, filho, as fizera, mas temo que não te prestem; porque como gastaste a vida toda em males e sempre com teu esterco sujaste os Templos dos Santos, receio que não me queiram ouvir, ainda que os rogue por sua saúde.


O PORCO E O LOBO

Estava uma porca com dores de parir, e um faminto Lobo se chegou a ela, dizendo que era seu amigo, e tinha dó de a ver desamparada, que queria servir-lhe de parteira. Bem entendeu a Porca que vinha ele por lhe comer os filhos; e dissimulando disse: Que não pariria enquanto ele ali estivesse, que era mui vergonhosa, e que se pejava dele, que era seu afilhado; portanto, que se fosse e a deixasse parir, e que depois tornaria. Fê-lo o Lobo assim, mas em se desviando dali, a Porca também se foi buscar um lugar seguro em parir.


O VELHO E A MOSCA

Repousava à soalheira um Velho calvo, com a cabeça descoberta, e uma Mosca não fazia senão picar-lhe na calva. Acudia logo o Velho com a mão, e como ela fugisse mui depressa, dava em si grandes palmadas, de que a Mosca gostava e se ria.. Disse o Velho: - Ride-vos, embora, de quantas vezes eu der em mim; que isso não me mata, mas se uma só vez vos acerta, ficareis morta, e pagareis o novo e o velho.


O CORDEIRO E O LOBO

Andava um Cordeiro entre as cabras e chegou o Lobo, dizendo-lhe: - Não é este o teu rebanho, vem comigo, levar-te-ei a tua mãe. Respondeu o Cordeiro. – Não quero; porque esta cabra me quer muito, e me faz mais mimo que a seu próprio filho. Contudo (replicou o Lobo) melhor estarás com tua mãe. Bem estou aqui (disse o Cordeiro) não quero provar ventura, que por bem que me suceda, não deixará o pastor de me tirar o velho, e ficarei morrendo de frio.


O HOMEM POBRE E A COBRA

Um homem pobre costumava afagar e dar de comer a uma Cobra, que em sua casa trazia; e enquanto assim o fez, tudo lhe ia por diante. Depois, por certa agasta dura, fez-lhe uma grande ferida. E vendo que tornava a empobrecer, com muitas palavras e humildade lhe pediu perdão. Respondeu a Cobra: - Eu de boamente te perdoo, mas não te há-de isto prestar para deixares de ser pobre; que esta ferida sempre me há-de doer, e sempre há-de estar pedindo vingança de ti.


O BUGIO, O LOBO E A RAPOSA

Querelou o Lobo da Raposa, dizendo que fizera um furto. Era juiz o Bugio. E a Raposa negou fortemente, disputando ambos diante do juiz e cada um descobriu quantas maldades sabia do outro. Depois de o Bugio os ouvir, pronunciou a sentença, dizendo: que o Lobo não provara bem ser-lhe feito furto: mas que ele entendera que a Raposa tinha furtado alguma cousa; portanto, condenava a ambos que ficassem entre si sempre desavindos, e suspeitosos.


A FAIA E A CANANOURA

A Faia alta e direita não queria dobrar-se ao vento, antes vendo a Cananoura que se meneava facilmente, a aconselhava que estivesse tesa, sem dobrar-se. Respondeu a Cananoura: - Tu podes resistir e eu não, que não tenho raízes compridas, nem sou forte como tu és. Dizendo isto, veio um pé de vento com braveza, que arrancou a faia com raízes e tudo; mas a Cananoura, que se dobrou, ficou em pé.


A FORMIGA E A CIGARRA

No Inverno tirava a Formiga da sua cova a assoalhar o trigo, que nela tinha, e a Cigarra com as mãos postas lhe pedia que repartisse com ela, que morria à fome. Perguntou-lhe a Formiga: que fizera no Estio, porque não guardara para se manter? Respondeu a Cigarra: - O Verão e Estio, gastei a cantar e passatempos pelos campos. A Formiga então, perseverando recolher seu trigo, lhe disse: - Amiga, pois os seis meses de Verão gastaste em cantar, bailar é comida saborosa e de gosto.


O CAMINHANTE E A ESPADA

Achou um Caminhante uma Espada bem guarnecida em meio da estrada, e perguntou-lhe quem a perdera, e deixara ali. Calou-se ela e esteve queda. Depois, sendo outra vez perguntada, respondeu: - Ninguém me perdeu a mim, ainda que me vês lançada neste chão, antes eu fiz perder a muita gente; que dando ocasiões a brigas, matei alguns homens de que resultou ficarem perdidos os matadores, e os mortos mais perdidos se não estavam em graça; porque caminharam para o Inferno.


O ASNO E O LEÃO

Encontrando-se em um caminho o Asno com o Leão, lhe disse: - Subamos a um outeiro, que quero que vejas os muitos animais, que hão medo de mim. Riu-se o Leão e foi com ele. Zurrou o Asno, e fez fugir grande número de lebres, coelhos, zorras e outros semelhantes. Disse-lhe então: - Que te parece? Vês este medo com que fogem de mim? Fogem de ti (respondeu o Leão) os fracos, que são os que cobram medo de ouvir bradar; mas eu sem brados desfaço às mãos os mais valentes; pelo que de nenhum, nem de ti tenho temor.


A GRALHA E A OVELHA

Uma Gralha ociosa pousou sobre o pescoço da Ovelha, e ali a repelava, e lhe tirava a lã, picando-a por entre ela. Virou a Ovelha o rosto, dizendo: - Esta manha ruim e antiga havereis de deixá-la esquecer, que podeis ir picar um rafeiro no pescoço e matar-vos-á levemente. Respondeu a Gralha: - Já sou velha, e muito feia e conheço a quem posso agravar e a quem devo afagar. Não temas que me ponha no pescoço do cão, senão no teu, que me não podes fazer mal.


O BOI E O VEADO

Por fugir o Veado de um caçador, se acolheu à vila, e entrando medroso em uma estrebaria, achou o Boi, a quem perguntou se podia esconder-se ali. Disse o Boi, que era muito certo o morrer e que antes devera tornar-se ao mato, e contudo o escondeu, e o cobriu de palha. Veio o dono da estrebaria e olhando por ele, viu as pontas do Veado. Foi descobri-lo, e achou o que era. Mas disse-lhe: Já que de tua vontade vieste à minha casa, não te quero matar, senão defender e fazer muitos mimos.


O HOMEM E O LEÃO

Andando o Leão à caça, meteu um estrepe no pé, com que não podia bulir-se. Encontrou um homem e mostrou-lhe para que lho tirasse. Fê-lo assim o homem, e o Leão em paga partiu da caça com ele. Dali a muito tempo foi tomado este Leão para certas festas e nelas se lançavam homens para que os matassem. Entre eles lhe lançaram este que o curou, que estava preso por algumas culpas. Porém o Leão não só o não matou, antes se pôs em sua guarda, e o acompanhou toda a vida, caçando para ele.


O LOBO E A RAPOSA

O Lobo se aparelhou e proveu sua cova muito bem de mantimento. A Raposa chegou e disse, que obrigada de amor andava atrás dele, por vê-lo e servi-lo. Não quero o teu serviço, (disse o Lobo) que tua intenção não é senão roubar-me e comeres-me o que eu tenho. Vendo-se a Raposa alcançada, buscou quem matasse o Lobo, e meteu-se de posse da sua cova, e de quanto estava nela, mas sobrevindo uns caçadores, foi achada dos cães e feita em pedaços.


O LEÃO E OUTROS ANIMAIS

Eleito o Leão rei de todos os animais, prometeu de a nenhum fazer mal. E logo chamando-os a cortes, os pôs por ordem, e corria-os, dando-lhes a cheirar o seu bafo. Os que diziam que lhes cheirava mal, os matava. Os que diziam que bem, feria-os. Andando assim, chegou à Mona, e perguntou-lhe, como a todos, se lhe fedia o bafo. A Mona o cheirou, e dizendo que não fedia, se foi. Porém o leão, para a matar, se fingiu doente, e disse que sararia se a comesse. E por esta manha tomou ocasião de a matar.


O VEADO E O CAÇADOR

Bebendo o Veado em uma ribeira, viu nos seus cornos ramos e as pernas delgadas, pareceram-lhe as pernas mal, e ficou pesaroso de as ter, e por outra parte tão satisfeito da formosura dos cornos, que se fez soberbo de contente. Ainda bem não saía da água, quando dá sobre ele um Caçador. Foi-lhe forçado valer-se dos pés, que pouco antes desprezara, e eles o punham em salvo. Mas entrando por um arvoredo basto, embaraçavam-se-lhe os cornos com os ramos das árvores, com que se embaraçou e foi tomado. Pelo que dizia, vendo-se preso e ferido: Grande parvo fui; que o que me era bom desestimei, fazendo muito caso do que me causou a morte.


A BICHA E A LIMA

Buscando a Bicha de comer na tenda de um ferreiro, foi topar com uma lima e quis roê-la, mas como os dentes não entravam pelo aço, dava-lhe muitas voltas virando-a de todas as bandas. Enfadada a Lima de andar aos tombos, lhe disse: Que fazes, parva? Não sabes que sou de ferro, e lima? Por muito que trabalhes desfarás os teus dentes; eu com os meus de aço bem temperado, cortarei dentes e qualquer arma a quem chegar, em pouco tempo.


OS CARNEIROS E O CARNICEIRO

Estando juntos uns Carneiros, entrou o Carniceiro, e eles não se alvoroçaram, nem fizeram caso disso. Tomou o Carniceiro um e logo o matou; e nem com ver sangue temeram os outros. Foi por diante e os matou a todos um a um até o derradeiro, que, vendo-se manietado, disse: - Por certo, com razão padecemos, pois vendo o nosso mal não quisemos entendê-lo. No princípio às marradas nos poderíamos defender, vendo que nos matavam, então não quisemos; agora eu só não posso: e assim acabámos todos.


O LOBO E O ASNO DOENTE

Estava o Asno mal-disposto, e foi o Lobo visitá-lo, fazendo-se muito amigo. Tomou-lhe o pulso, correu-lhe a mão pelo rosto e disse: que queria curá-lo. Estava o Asno quedo, bem desejoso de se ver a cem léguas do Lobo, o qual lhe apalpava os membros todos: perguntou onde lhe doía, e apertava-o e arrepelava-o tanto, que disse o Asno: - Onde quer que me pões a mão, logo aí me dói; mas rogo-te que te vás e não me cures, que ido tu, sararei logo.


A PULGA E O CAMELO

Pôs-se uma Pulga sobre um Camelo carregado, e deixou-se ir sobre a carga uma jornada, no fim da qual saltou abaixo, e sacudindo-se, disse: - Folgo em verdade de me descer: porque tinha dó de ti; agora irás leve com pouca carga. O Camelo se riu deste cumprimento e respondeu: - Nunca te senti se te levava em cima, nem tu podes carregar-me nem aliviar-me; que não tens peso para isso. A carga que eu levo, essa sinto. Tu não tens peso para te sentirem.


O CAÇADOR E AS AVES

Consertava um pobre Caçador as varas do visco; e as Aves olhando, estavam cantando à sombra das árvores e gabando-o de benfeitor e primoroso. Um pássaro já experimentado lhes disse aos outros: - Fujamos logo todos, porque este que vedes, não quer mais que enviscar-nos e prender-nos. Andemos pelo ar, até ver o que acontece a outra; porque este e todos como ele, quantos de nós houverem às mãos, ou lhes torcem o pescoço, ou lho cortam, e mortos, ou presos nos metem em sua taleiga.


O CERVO E O CAVALO

Pelejaram algumas vezes sobre o pasto, o Cervo e o bom do Cavalo, e porque o Veado com os cornos fez sempre fugir o Cavalo, foi-se a um homem e disse-lhe: - Põe-me um freio, uma sela e sobe sobre mim, e matarás um Veado que aqui anda. Fê-lo o homem assim. E morto o Veado, quis o Cavalo que se apeasse; mas o homem acolheu-se à posse e o Cavalo ficou sempre sujeito ao freio e sela, e a andar debaixo.


O BUITRE E MAIS PÁSSAROS

O Buitre convidou a banquete todas as outras aves, dizendo que queria solenizar o seu natal. Vieram muitas delas e recolhendo-as todas em um aposento, depois que foram horas de cear, como todas estivessem assentadas esperando, vem o Buitre e cerra as portas, e começa a matá-las a uma e uma. Todas com medo avoejavam, por não haver alguma que se atrevesse com ele. E enfim ele sem piedade as matou, porque para isso as convidou ou ao menos para as pilhar.


A RAPOSA E O LEÃO

Fingindo-se o Leão enfermo, visitavam-no os outros animais; e de quantos entravam na cova, nenhum deixava sair. Eles obedeciam como a rei, mas o Leão a um e um os comia todos. Por derradeiro chegou a Raposa à porta da cova e perguntou-lhe: - como estava? Respondeu o Leão, - porque não entrava a vê-lo? Respondeu a Raposa – que não era necessário, que devia estar a casa cheia de gente; que ela via muitas pegadas dos que entravam, e nenhuma de que saíssem para fora.


O CARNEIRO GRANDE E OS PEQUENOS

Três Carneiros moços e um marroço andavam passando. Saiu o velho correndo e fugindo. Os outros estavam pasmados, sem saber a causa, e como não entendiam seu perigo, riam-se do medo, e fugida do marroço, o qual vendo-os escarnecer-lhes, disse: - Vós sois loucos e ignorantes; não vedes que quando vem o carniceiro sempre mata os maiores? Eu por isso fujo. Mas quando ele vier e vos matar, pesar-vos-á de terdes escarnecido e esperado.


O LEÃO E O HOMEM

O Homem com o Leão altercavam sobre qual era mais valente. O Homem, para provar sua tenção, o levou a um sepulcro, onde estava de pedra um homem afogando um Leão, que tinha debaixo de si. O Leão se riu, de ver isto, dizendo: - Se não fora homem o que isto aqui pôs, pudera ter algum crédito, mas sendo homem é suspeito. Portanto, deixemos pinturas e provemos isto pelo braço. E logo isto dito estendeu o Homem no chão, e o matou com muita facilidade.


FÁBULAS DE ESOPO, VERTIDAS DO GREGO POR MANUEL MENDES DA VIDIGUEIRA






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